quinta-feira, julho 13, 2006

O frescobol dos namorados
Felipe Moura Brasil (Pim)

Juntam-se as mulheres nos salões de beleza para fazer, entre outras feminilidades, chapinha, escova, escova progressiva, hidratação, francesinha, limpeza de pele, depilação de perna, meia perna, axila, buço, sobrancelha, e, como se sabe, para falar mal dos homens – invariavelmente os seus. Basta que uma quebre o ritual, dizendo algo como “Queria deixar o cabelo curtinho, mas meu marido não gosta” para ser pejorativa e instantaneamente taxada de submissa pelas demais: “Você trabalha fora?”, perguntam elas, insinuando que a submissão, digamos, capilar só seria justificável em caso de dependência financeira. (“Sim, mas eu sou ‘Amélia’ mesmo”, responderia sem a menor vaidade a mulher dos meus sonhos).

Quando vão juntas ao banheiro (no mundo inteiro elas vão juntas ao banheiro – já escrevi sobre isso de Madri), se uma admite não ter vindo com determinado vestido só porque seu dele decote gera ciúmes no namorado, aí é caso de internação espiritual urgente para exorcizar o vestígio escravo da vida pregressa. Nem sob argumentos de ter dito a ele que então usaria o vestido decotado quando estivesse sozinha, e portanto “pior pra você”, toma-se por declarada a alforria. Mulher não pode ter dó, deve ser senhora de si, e “si” inclui seus cabelos e seus vestidos decotados – fim. De nada valerá a discussão sanitária: para quem saiu de casa, ganhou o mercado de trabalho e se emancipou, agora é retroceder nunca, render-se jamais. Ainda mais se o namorado se recusar a fazer companhia no dentista, jamais ter levado um café-da-manhã na cama, e gostar de provocar amigas e vendedoras de loja em sua frente, bem como de maldizer a dita-cuja no chope depois da pelada. Prato cheio para a competição.

Eis, pois, os cônjuges modernos, aqueles que namoram “contra” o outro. (Há também os que namoram “com” o outro, mas estes são os cônjuges analfabetos, pois, como bem sabe o leitor, namora-se alguém e não “com” alguém). Deve ser culpa da economia, do mercado de trabalho, das grandes empresas, o sujeito passa o dia inteiro tentando ser melhor que o vizinho de mesa e, à noite, no embalo, quer ser melhor que a mulher. E ela, por sua vez, de tão historicamente bem-sucedida, não só não o aceita como provedor como também faz vista grossa ao cargo secundário de “acompanhante”, de modo que eles se tornam dois típicos adolescentes incapazes por exemplo de elogiar o outro, com medo de deixá-lo metido. Como se sabe, os homens são cafajestes e as mulheres são “confusas”, então nada de encher a bola ou se entregar demais, e não interessa se você assumiu um compromisso ou não, o importante é colecionar motivos para não sofrer em caso de derrota.

“O amor infiel não é o amor livre: é o amor esquecidiço, o amor renegado, o amor que esquece ou detesta o que amou e que, portanto, se esquece ou se detesta” (André Comte-Sponville, “Pequeno tratado das grandes virtudes”). Não se trata de trair, e muito menos de viver o tal amor livre, cuja diferença é a dispensa prévia e ao menos honesta da exclusividade corporal - nada disso. Na verdade quem namora “contra” busca menos a infidelidade do que uma proteção contra ela, seja no ódio, no esquecimento, ou na simulação dos dois diante dos amigos, e muitas vezes recorre ao ataque como a melhor defesa para a “dor de corno”. É a vingança antecipada com a qual se alimenta o rancor. “Ah, o martírio dos amantes, que não se acreditam, que não se confiam, que não tem senão um cárcere de medos, onde afogam o sentimento espiritualíssimo da carne” (Antônio Maria, “Canção modal do homem que chama sua amada”, publicada na véspera do Dia dos Namorados de 1960).

Se perdurarem juntos (e há alguns que agüentam, notadamente aqueles que insistem em enxergar no outro o que este poderia ser, deixando-se guiar pelo potencial, muito embora em vez de educá-lo como cônjuge prefira sempre maldizê-lo em público, e aqueles que, por simples insegurança masoquista, temem não encontrar coisa melhor: na maioria das vezes, aliás, os dois casos se fundem), mas se perdurarem juntos, eu dizia, eles hão de competir um dia também pelo carinho do filho, seguramente a personificação da rivalidade mal resolvida dos pais e quiçá um louco varrido, desses que escutam música eletrônica em casa, que com sorte lhes fará notar, entre uma porção de remorsos, o quão produtivo e até prazeroso teria sido senão fazer companhia no dentista, levar café-da-manhã na cama e cortar o cabelo como o outro queria, ao menos saber que em jogo de frescobol não existe vencedor...

Nota de rodapé no embalo: Por falar em Antônio Maria, reproduzo aqui outro memorável trecho de sua deliciosa obra cronicada (organizada há poucos anos, aliás, por Joaquim Ferreira dos Santos no livro “Benditas sejam as moças”), para que se identifiquem, e quem sabe riam, tanto os casados como os solteiros que acumulam num silêncio angustiado seu “cárcere de medos”: “Eu, como sempre brilhante naquilo que irei dizer e em tudo que poderia ter dito, na hora de falar, não disse coisa nenhuma”.

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