domingo, novembro 06, 2005

CUSPINDO O GIM VITÓRIA
Reinaldo Azevedo - O Globo - 05/11/2005

Os vampiros morais do stalinismo estão inquietos. O atavismo lhes assanha a sede. Os cadáveres adiados querem sangue. Alguns exibem seu passado de resistência ao regime militar, omitindo, é claro, que ambicionavam a sua própria ditadura. Já que não conseguiram, pedem indenização ao “Estado burguês” como um galardão para o seu fracasso. Outros estão naquela quadra em que só conseguem emprego praticando sectarismo oficialista. E há os que exibem a sua madura sapiência contra esses moços, pobres moços!, que ainda não sabem o que eles julgam saber. Como se burrice não ficasse velha. Como se canalhas não encanecessem.

Repito Antero de Quental: a tolice num velho me incomoda tanto quanto a gravidade numa criança. Cito a frase com desconforto porque o jovem poeta português a empregou contra Castilho, um monumento da poesia —- e, sobretudo, da tradução, dada a época —- portuguesa. Os de agora, de Castilho, não têm nem a cegueira física. Não enxergam, mas sua cegueira é ética.
Até quinta passada, a corriola stalinista, recebendo o “ouro do PT”, estava assanhadíssima e seguia à risca o roteiro que denunciava “a conspiração da direita” contra Lula, o comandante deste governo honrado. E a prova que exibiam as fuinhas da reputação alheia era um juízo de valor: o PSDB e o PFL criticariam o PT não porque mais morais, mas porque ambicionam o seu lugar para roubar a salvo.

Deve ser uma tragédia ficar só com a pior parte da maturidade. Ah, se eu pudesse, aos 44, conservar os cabelos dos 20 com o que há hoje por baixo do que deles me resta! A idade, esta pantera!, levou-me a cabeleira, pôs-me alguns sulcos, ainda leves, nas faces, mas me conferiu um férreo apreço pela lógica, não me deixou perder o bonde. Ainda que fosse aquela a motivação dos adversários de Lula, seriam outros os crimes do PT? A natureza, a vocação e a qualidade dos que se opõem à delinqüência confessa santificam ou perdoam o mal?

Chegamos àquele ponto da trajetória que divide, sim, os partidários da herança comunista e liberal. Em 1934, André Gide participa, sob os auspícios e o patrocínio de Jdanov (o ministro da Cultura da URSS que Graciliano Ramos achava “uma besta”), do Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos. André Malraux e Louis Aragon também foram. Só Gide saiu atirando e acusou o horror que presenciou. Escreveu um livro sobre a experiência, “Retour de l’URSS”, em que desanca o regime. A esquerda passou a satanizá-lo, o que não é prova, mas é indício do bom caráter da vítima. Malraux integrava a lista de intelectuais comunistas saudados como heróis. Teve o descaramento de dizer que os Processos de Moscou não maculavam a essência humana do socialismo. Era um espião.

Acusar os crimes de Stalin, para a intelligentsia comunista, correspondia a fazer o jogo do imperialismo. O PC do B de Aldo Rebelo acredita nisso até hoje. Os que ousavam alguma crítica viam, no máximo, um desvio de princípio, jamais admitindo o cerne criminoso de um regime que rejeita, por dispensáveis, as liberdades públicas e antepõe os interesses coletivos — definidos pelo partido, é claro — aos individuais. Esse entulho baixou na imprensa nativa. Querem ver em Lula o Getúlio acuado de 1954 — pelo qual, de resto, não tenho a menor simpatia — ou o João Goulart de 1964, o que até faz algum sentido: o petista também é um baderneiro. A palavra de ordem é cassar e caçar “a direita”. A ordem é botar a boca no trombone para intimidar e calar os adversários. O desavisado poderia julgar que essa tal “direita” seria composta, sei lá, por banqueiros. Mas por que um banqueiro teria interesse em depor Lula?

Na quinta-feira, veio à luz a evidência nua, crua, inequívoca, de que o “PTduto” foi irrigado com dinheiro público, de que os empréstimos são uma falácia, de que o caixa dois era só o crime menor, inventado por um jurista esperto, para esconder um crime maior. Não, senhores! O problema do PT não está só no que esconde em caixas de rum, Red Label e Black Label. O problema do PT está no gim Vitória que queria que engolíssemos.

E a democracia decidiu cuspi-lo.